Dada as nossas visões de mundo um tanto quanto díspares, não são infreqüentes as discussões que travo com Diego de Navarro (cidade localizada no estreito Boliviano, ao norte da tribo tihuana). Ocorre que nem todas elas são de cunho político. Algumas, acredito, trazem alguma conseqüência. Como essa daqui que irei relatar:
Estava eu naquele software muito conhecido de conversas on-line quando li em seu nick a seguinte frase: "As urnas eletrônicas são máquinas Diebold. Procure saber mais sobre isso. Seu voto pode estar sendo roubado." Subitamente assustei-me com tal alarde.
- O que é isso, meu filho?
Eis que o Liberal dos Andes me responde que há muito já sabia da fragilidade das máquinas Diebold, desacreditada por inúmeros centros de pesquisas.
- Eu só não sabia que essas máquinas eram usadas no sistema de nossas urnas eletrônicas. Para adulterar a contagem de votos basta ter acesso ao computador. Não é necessário nem senha.
- Você está insinuando que o nosso sistema eleitoral foi fraudado?
- Não estou dizendo que foi, mas não se pode propagar que o nosso sistema é o mais seguro do mundo porque não é.
E qual o sistema é o mais seguro?
- A grande maioria dos países, incluídos aí as nações de tecnologia avançada, continua usando o papel. “Um papel perfurado para facilitar a contagem, mas, seja como for, é imprescindível que se tenha acesso ao suporte em que o eleitor votou caso ocorra alguma suspeita de fraude. Só assim a recontagem poderá ser cem por cento segura”. A idéia que alguém possa ter acesso a contagem de votos, podendo adulterá-la sem que haja um vestígio não é muito confortável.
- Isso acaba de me lembrar da fotografia digital, de como ela cria um terreno falso...
- Bobagem! – exclamou o cético Navarro, como é de praxe - A fotografia sempre emulou, sempre foi enganadora. As cores que vemos numa fotografia não passam de compostos químicos e que podem variar dependendo do tipo de filme. Um lago enorme que vemos em um retrato pode ser, na verdade, uma pequena poça, de acordo com a distância focal da lente. O terreno falso já existia.
- De certo modo é verdade o que estais dizendo. Só os ingênuos acreditam na idéia da fotografia como mimese da realidade. Até porque o parâmetro que se tem dessa realidade são o dos nossos olhos, que estão longe de assegurar uma ‘visão fiel’. Não é disso que estou falando. Há uma verdade na fotografia que não é a verdade da cópia, mas, como dizer...de um testemunho, de , uma ‘emanação’do real, como diria Barthes.
- A fotografia nada emana a menos que seja percebida por um olhar
- Há uma emanação na fotografia alheia ao ser humano, indiferente ao olhar. E isso por mais que incomode os defensores da relatividade semântica não há como negar, na fotografia, um estágio de inscrição anterior a qualquer código. Falo do traço, da marca, de uma contigência física tão verdadeira como a de uma maçã caindo de uma árvore ou de uma onda chocando-se contra o mar. O filme é uma camada sensível à luz que quando penetrada peles raios refletidos de algum objeto sofre uma inscrição. Assim a imagem fotográfica atesta a existência de um objeto tanto quanto a queimadura de uma pele atesta a existência de calor. Não digo que códigos não influam na fotografia mas isso se dá num estágio posterior. A fotografia antes de ser uma representação do homem, é uma contingência.
Por essa razão Philippe Dubois em O Ato Fotográfico afirma o caráter de índice da fotografia. Nas categorias semióticas de Pierce, índice é um signo que tem uma ligação existencial com seu referente, uma conexão física. O catavento que indica a direção do vento, o quadrante solar que marca a hora, a fumaça que assinala o fogo - todas esses são exemplos de índice. A fotografia também o é. Onde há imagem fotográfica há objeto. Demonstração que o próprio Pierce já havia exposto em seus escritos.
“As fotografias, em particular as fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que sob certos aspectos elas se parecem exatamente com os objetos que representam. Porém essa semelhança deve-se, na realidade, ao fato de que essas fografias foram produzidas em circunstâncias em que eram fisicamente forçadas a corresponder ponto por ponto, à natureza. Desse ponto de vista, portanto elas pertencem à segunda classe de signos(índice): os signos por conexão física” (Pierce)
Pelo fato da fotografia ser um índice é que garante a ela o valor de atestação, de testemunho de um objeto que fora por ela fotografado. Assim um retrato de um vaso de planta atesta e só pode atestar a existência em algum espaço-tempo desse mesmo vaso de planta. “Se de fato a imagem fotográfica é a impressão física de um referente único, isso quer dizer, (...) que no momento em que nos encontramos diante de uma fotografia, está só pode remeter à existência do objeto do qual procede (Dubois).”
Essa noção de índice representa uma nova maneira de encarar a realidade na fotografia, que antes era baseada no conceito de ícone, numa ingênua consideração da foto como um analogon do real. Barthes já havia salientado essa questão quando batizou a fotografia com o noema de "Isso foi": "Penso novamente na fotografia de Willian Casby, nascido escravo. O noema aqui é intenso, pois aquele que vejo foi escravo; ele certifica que a escravidão existiu, não tão longe de nós; e o certifica, não por testemunhos históricos, mas por uma nova ordem de provas". Note que Barthes não está preocupado se a fotografia representa fielmente, nos moldes euclidianos, Willian Casby. O que o chama a atenção é essa inevitablidade atestatória da fotografia. É a capacidade de a foto carregar consigo 'as provas' de um Willian Casby perdido na história, e que não poderiam ser obtidas por qualquer outra forma de representação. Só na fotografia a existência de um objeto é condição sine qua non para a formação de sua imagem. Todas as outras formas de representação podem prescindir de um objeto, por pura criação mental.
Pouco importa se a pele desse homem é mais escura ou mais clara, se sua face está representada na proporção exata. O que importa é que esse homem foi escravo.
Portanto quando disse terreno falso estava querendo contrapor a esse terreno verdadeiro da fotografia, de sua contingência atestatória. Cabe a pergunta então: será que se essa fotografia de Willian Casby vista por Barthes autentificaria a escravidão caso fosse feita em suporte digital?
Não é uma pergunta fácil de se responder por que a tecnologia digital questiona esse estatuto de ‘realidade’ da fotografia lançado por Dubois , baseada na contigüidade física do suporte. Na nova tecnologia não existe contingência, mas a virtualidade.
A conexão física do signo com o objeto fotografico cessa no momento em que um dispositivo (sensor) transforma os sinais luminosos em seqüências numéricas representativas daquela imagem. Há aí nesse instante um descolamento do espaço físico, uma ruptura da conexão física de seu indicionamento. Não se pode mais falar do “ Isso foi” de Barthes . Nada atesta que aquelas relações numéricas foram atingidas pela imagem, por que são números, puras abstrações. Esses números não me dizem nada a não ser a própria imagem. Um negativo diz mais que isso...ele diz “ali houve um objeto, fui marcada por ele” como as cicatrizes de uma esposa traumatizada que denuncia um marido violento.
É verdade que a fotografia digital conserva um instante objetivo, uma gênese automática, diria Bazin. As seqüências numéricas são representações fiéis daqueles sinais luminosos , reconstituídos matematicamente ponto por ponto. Razão pela qual poderíamos falar em alguma credibilidade da fotografia digital mas não de sua atestabilidade. Há nela por essência o desaparecimento da marca, do traço da matéria–como-prova. Portanto essa credibilidade não deixa de ser frágil pois esta apoiada em números abstratos. Somos levados, por causa de seu dispositivo automático, a acreditar na imaculação de tais seqüências numéricas mas esquecemos que estas podem ser adulteradas sem que haja vestígio desse processo.
A adulteração, ou ‘manipulação’, parece ser a regra e não a exceção da fotografia digital pois é um processo limpo e automático. Ocorre ao simples toque de um botão do computador. Ao contrário, na película a adulteração é um exercício árduo em que se tenta vencer a impressão luminosa fixada na película (Penso na foto na qual Stalin mandou tirar a imagem de Trosky na vã tentativa de tirá-lo da história). Mas seja como for - seja o processo fácil ou difícil - o fato é que na película, a manipulação pode ser desvendada. Se o ato ocorrer na passagem do negativo para a cópia, basta comparar com o negativo, que é a origem, a prova da imagem fotográfia. Se a adulteração for no negativo há sempre algum meio de encontrar 'pistas', vestígios deixado pelo 'infrator' . Mas a ação investigatória é impotente diante de números virtuais. Estes são recalculados ad infinutum, redesenhando a imagem, recriando uma nova iconografia, negando aquilo que alguma vez foi um puro registro da vida. As fotografias digitais são "quimeras." Não revelam "o isso foi"de Barthes, mas nos transportam para o "isso imaginário".
Essa casa, aquelas pessoas e o balanço não existem e que por isso são eternos.
As fotos digitais são tão autênticas quanto o voto do eleitor das máquinas Diebold, ou como uma assinatura digital - em todas elas estamos diante de um algo fora do espaço-tempo, que se camufla como se estivesse dentro. Desejamos tocar nas imagens do computador (parecem tão palpáveis!) mas são como aquelas nuvens que se afastam a medida que nos aproximemos deixando-nos desolado na impossiblidade de um contato. Eis portanto o simulacro - aquilo que parece mas não é; ou, ainda, a utopia - lugar que não existe.
Fotos (em ordem):
Willian Casby, nascido escravo - R. Avedon,
wheee! - Rebekka Guðleifsdóttir
Anônimo