DIREITO? PARA QUEM? PARA O FLEURY, A LEI RESPONDE
(observações sobre um tal referendo, ainda)
Já faz mais de uma semana que o referendo do "desarmamento" ocorreu. O assunto que gerara discussões acaloradas nas mesas de bares, nos banheiros femininos e no orkut extinguiu-se. Última notícia do jornal: o "não" venceu arrasadoramente. Ponto Final. Página Virada. Mas se os assuntos e as matérias estão fadados ao esquecimento, as falácias, essas dádivas da artimanha humana, perduram sem prazo de validade. Qual foi a grande fálacia da ocasião do referendo? A tese de um suposto princípio universal inalienável: o direito à legitima defesa da vida. Vou tentar deixar mais claro, sobretudo para os que têm um especial apego pelos seus direitos, o tamanho do engodo que nem os defensores do escravismo no século retrasado ousariam arquitetar.
Se se trata defender a arma como um direito inalienável de proteção a vida, esse direito deveria se estender a todos os cidadãos que estão sobre a égide da lei. Isso abarca os desempregados, os que não tem moradia fixa e inclusive aqueles que têm antecedente criminal. Um direito de proteção à vida nunca pode ser circunscrito a um determinado grupo ou indivíduo, sob pena de comprometer o estado democrático de direito. É como explicitar no papel que uma vida vale mais que a outra. Na idade média havia aqueles que possuíam exército particular, defendendo-se de invasões e afirmando-se como um estado próprio. E havia o resto, a plebe que tinha o destino que lhe cabia – a margem dos grades castelos fortificados. E o que vemos hoje? A lei diz: “aquele furibundo morador de rua não pode ter armas, pois é um criminoso em potencial” , enquanto sorri com gosto: “veja aquele morador de um belo jardim, que exemplo de homem de bem, esse merece o tal objeto matador”.
O ardil que se esconde atrás da lei consiste na divisão da sociedade em cidadão “de bem” e cidadão “do mal”. Nesse mundo ficcional há um poder, uma espécie de oráculo que prevê que certo tipo de indivíduo irá cometer crime enquanto outro tipo ele assegura que não irá cometer crime algum. O princípio democrático do “ninguém é culpado até que se prove o contrário” é substituído pela tese do “criminoso em potencial”. Julga-se antes da ação. É a mesma lógica Kafkiana que serviu de embuste para Bush invadir o Iraque, a pretexto de armas biológicas (que nunca foi muito bem provado). Nessa ficção o Iraque é um futuro criminoso e cabe aos EUA assegurar a paz mundial. Do lado de cá, após o referendo, a sociedade voltou a respirar aliviada, pois a lei deixou de ser ameaçada, assegurando o sagrado direito de ter armas pelo cidadão de bem enquanto proíbe o cidadão do mal de ameaçar a paz.
No entanto há algo que me atormenta nessa paz: a lembrança de uma série de homicídios consumados contra moradores de rua ano passado reportados pela mídia. Muitos não deram a devida atenção para a notícia, alguns se chocaram mas ninguém, veja só, defendeu uma programa estatal de custeio da arma para os moradores de rua. Por que será? Eles não têm o direito de defender suas vidas? Ou será que eles estão mais protegidos do que aqueles que têm moradia? Na hipótese de eles estarem tão desprotegidos quanto um morador com teto, então, segundo o raciocínio do Fleury, para quem a arma é direito a legitima defesa, valeria um programa governamental de armamento para essa população carente. Pois é assim com a educação e a saúde - dois direitos imprescindíveis à vida que o governo, embora com insuficiência, procura fornecer àqueles que não tem direito de comprá-los. Por essa razão constrói -se escolas e hospitais públicos. Se o Fleury defende a arma pessoal como direito sagrado, por que não defende também a criação de uma indústria pública de armamentos. Assim cada indivíduo que provasse não ter renda suficiente ganharia uma arma: seria o “Vale-38 – a solução do cidadão”. Com essa medida todo mundo ficaria protegido contra supostos ataques contra a vida. Mas obviamente que são suposições lunáticas de uma mente atormentada, e o Fleury, homem sensato, não embarcaria nessa. Imagine ir contra um princípio universal da lei brasileira: a democracia restrita.
Dou uma bala de 38mm para quem (desde que seja cidadão de bem pois não faço apologia do crime) concluiu que só há dois caminhos a escolher para aqueles que defendem a igualdade de direitos: um é que todos os cidadãos possam ter acesso a armas, garantindo assim a todos o direito de se protegerem; o outro caminho seria destituir o direito de ter armas do cidadão comum para delegar essa tarefa a uma instituição pública responsável pela proteção da sociedade. O país não decidiu nem por um, nem por outro, preferiu a tradição do feudo.
quarta-feira, novembro 02, 2005
sexta-feira, outubro 21, 2005
ENTRE A INDIFERENÇA E O MEDO (leitura para uma manhã de domingo)
Recentemente rememoramos a música “Aluga-se”de Raul Seixas através de uma propaganda televisiva de uma conhecida marca de automóveis. Em 30 segundos o comercial desmoronou a ironia do refrão (“nós não vamos pagar nada!”) para vender carros sem juros. Mais do que o talento do publicitário, o que me chamou a atenção nesse fato é a capacidade do capitalismo em absorver toda a forma de discurso a seu favor. Ela assimila e pasteuriza toda e qualquer prática não hegemônica tornando-a essa mesma impotente. Agora entendo Baudrillard quando escreveu “Vivemos na reprodução indefinida de ideais, de fantasmas, de imagens, de sonhos que doravante ficaram para trás e que, no entanto, devemos reproduzir numa espécie de indiferença fatal”.
Nesses últimos dias estamos assistindo a cópia de um discurso rebelde e dito libertário para barrar a proibição da comercialização da venda de armas. Alguns dizem “Imagine se um governo totalitário toma o poder” “Como iremos reagir?” “Cidadãos do mundo inteiro armai-vos para preservar a democracia!”. Reproduz-se esse discurso, negando a lógica de que uma arma revolucionária é por definição ilegal. Mas isso pouco importa. O ideal revive, nossos sonhos juvenis estão aí para proteger a boa rentabilidade da Taurus Co.
Evidentemente essa estratégia do ‘libelo rebelde para o lucro’ seria insuficiente para assegurar os direitos da indústria de armamentos. Afinal, nem todas as pessoas pró ‘não’ são chegados a democracia, e mesmo as que são, muitas não tem qualquer vocação revolucionária. Para essas há uma outra estratégia pairando no ar mais eficaz, pois mexe com nossos instintos mais primitivos: a manipulação do medo - a criação de um estado paranóico que leva a pessoa a acreditar que sua casa será invadida em caso da vitória do ‘sim’. Grande parte das pessoas do “não”, não tem armas e nem pretendem ter mas votam no ‘não’ por que dizem: “sei lá né? Vai que um ladrão entra na minha casa, não posso não ter o direito de me defender”. Ora, muitas são as consciências e muitas são as realidades. Poucas negariam que existe violência, mas quando alguém reivindica o direito de portar um objeto, sem nunca ter considerado a arma uma boa forma de proteção (se não já portaria uma arma), por causa de um suposto ataque futuro é porque a indústria do medo já o tomou de assalto. Só lhe resta entrincheirar-se, protegendo sua propriedade, sua família e rezando a Deus.
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